domingo, 11 de janeiro de 2009

Ela chorou sentada sobre os escombros do que um dia foi. Os olhos ardiam, como se o pó enraizasse na nascente do rio salgado que escorria, descontrolado. Os mesmos olhos que brilhavam furtacor, hoje sustentavam o brilho branco-leitoso, opaco, quase fosco da perda do que não volta, do que já não se tinha. Mas a lembrança triste despencara sobre as alegres-inocentes-infantis com a mesma força com que a parede despencara sobre a grama seca já sem rosas, já sem latidos, já sem ameixas, já sem hibiscos. Ficou só espinho, só sobrou caroço. O osso. O esqueleto de uma vida sem carne, sem sangue. A cartilagem consumida pela terra, aquela que ligava e mantinha o organismo funcionando. Peças separadas, sem encaixe, cada uma sendo devorada por um verme diferente. Sem pulso. Sem vida.
"Um curinga é um pequeno bobo da corte; uma figura diferente de todas as outras. Não é nem de paus, nem de ouros, nem de copas e nem de espadas. Não é oito, nem nove, nem rei e nem valete.
É um caso à parte; uma carta sem relação com as outras. Ele está no mesmo monte das outras cartas, mas aquele não é seu lugar. Por isso ele pode ser separado do monte sem que ninguém sinta falta dele."



"Se no meio de todas as pessoas houver apenas uma que se surpreenda com a vida a cada instante e tenha a sensação, toda vez que isso acontece, de estar diante de algo fabuloso e enigmático... se apenas uma delas experimentar a vida como uma aventura fantástica... e se ele ou ela experimentar essa sensação todos os dias... ele ou ela será um curinga no baralho."


E assim você se contenta com a gaveta. Com o lugar na coleção de peças-não-encaixáveis. Toma consciência da razão de ser das regras impostas por todos/ninguém: não deixar que o jogo seja fácil demais. E não mais lamenta não participar dele. Às vezes ainda bambeia as pernas com o peso da responsabilidade de não ter um número, de não ter um naipe. De ser capaz de se encaixar em qualquer lugar, mas não pertencer a nenhum. De ser o eterno substituto, ocupando um lugar que não é seu. Mas não quebra mais a cabeça tentando entender por que não tem nenhum símbolo gravado nas costas. Sabe tanto quanto os outros, mas ainda assim se pergunta. Ainda assim se surpreende com a presença ou ausência de respostas. Ainda assim as procura e, ainda assim, sem fazer parte do jogo, entende as regras como ninguém, e agradece por não precisar segui-las. Pelo menos a maior parte do tempo.