quinta-feira, 18 de setembro de 2008

O melhor amigo

Ser humano é cachorro, por isso se identifica tanto. É o que eu já te disse, menina, cachorro acostumado a apanhar se esquiva da mão que alimenta. Cachorro preso a vida toda tem medo da rua. Se chegar alguém e abrir o canil, ele até sai, mas com o rabo no meio das pernas, esperando ser pego. Entende? Não, não tô falando dos que fogem correndo, esses já conheciam a rua! É diferente. Se o cachorro for esperto, ele vai ter medo. Vai ter medo até de gato. Cachorro devia ter medo de gato, e não o contrário. Ser humano tem. "Eu não gosto de gatos, eles são traiçoeiros". São? Quando foi que o gato olhou pro dono e jurou lealdade? Ah, faça o favor... Gatos são livres. Pronto, por isso ser humano não gosta. Tem inveja. Se tranca no canil por conta própria, e não entende como os gatos podem sair por aí e ainda lembrarem o caminho de casa. Verdade seja dita, o homem não se sente completamente feliz se não houver ninguém abanando o rabinho pra ele. Pronto, falei. Não, eu não disse que não gosto de cachorros. Eu não disse que não sou humano! É só que me dá raiva, sabe, tentar sair do canil e ainda ter medo dos carros. Eu quero sair, porra. E tem gente me estendendo a mão, e eu sei que não é pra bater. Desta vez. Mas, mesmo assim, eu me esquivo. É reflexo, entende? A vida inteira foi assim. Só conheço isso. É a mesma coisa com passarinhos... Se nasceu na gaiola, não vai saber voar muito longe. Passarinho sabe caçar quando só come alpiste? Sei lá porque não dei esse exemplo desde o começo, ser humano não é passarinho. Não todos. Deixa pra lá. Não, não adianta me estender a mão agora, menina, eu vou segurar, posso até te seguir, mas não me peça pra tirar o rabo do meio das pernas. Espera mais uns quilômetros.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Ainda bem

- Às vezes a gente perde a fé nas outras pessoas, e com motivo. Mas isso é normal, tem tanta gente por aí que não vale à pena, mesmo... Só que tem gente que para, fica estagnada, pensa que não vale à pena se manter na linha de evolução, acham que seriam as únicas. Mas eu digo que, enquanto você continua crescendo, aprendendo, se fodendo pra virar alguma coisa, enquanto você se mantiver puro, bá, que bosta de palavra, mas é isso mesmo, enquanto você se mantiver puro, sempre vai ter alguém por aí merecendo isso, entende? Pode ser difícil de achar, mas existe, sempre existe. E, quando você encontrar essa pessoa, não é melhor que você mereça ela também?
- Hmmm... Acho que é.
...
- Ainda bem que eu te mereço.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Infância tardia

Por não termos a senha da roda-gigante, nos sentamos na xícara, porque ela também anda em círculos. E aí, você começou a girar, nunca me perdendo de vista, sempre me mantendo na posição de único objeto em foco em meio a um borrão multicolorido. Então, você quis mais. Acelerou. Girou tão rápido que tudo ao redor ficou de uma cor só, e meu rosto borrou. Qual o sentido de ir rápido demais quando não se chega a lugar algum? Não, eu não sinto muito por ter gritado até fazer você parar. Eu te puxei pelas mãos e nós saímos juntos - ainda que trôpegos, nauseados. Um pra cada lado.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Fazer o quê?

- Meu filho, é bem simples, só vou falar uma vez: tem gente que precisa se perder pra se encontrar.
- Mas isso não faz o menor sentido.
- Como não? Faz todo o sentido!
- Se perder pra se encontrar? Como?
- Tem gente que não sabe onde está.
- E, pra descobrir, tem que se perder? Não! É aí que não faz sentido.
- Tem gente que consegue descobrir sem sair do lugar, tem gente que já nasceu sabendo, tem gente que nem quer saber. Mas há outras pessoas, também. Há aquelas que precisam sair por aí, dar uma volta por outros lugares, vai que o lugar delas não era aquele. E, se for, elas descobrem o caminho de volta, sempre descobrem. Entende?
- Hm. Mas e se elas não encontrarem?
- Continuam procurando.
- Eu não posso indicar o caminho?
- O que te faz pensar que tu sabes o lugar de alguém?
- Não é que eu saiba, eu poderia só avisar quando elas não sabem que andam em círculos...
- Poderias. Tu avisarias e elas não entenderiam, não aceitariam. Não é assim que acontece? Cada um acaba encontrando o próprio caminho sozinho. Por isso eu digo, elas continuam procurando.
- E se desistirem de procurar?
- Bom... Aí é problema delas.